Maestras: Os Bastidores das Líderes de Orquestras
- bragamarcelle
- 8 de out.
- 5 min de leitura
Atualizado: 10 de out.
Desafios das Mulheres por um Espaço de Igualdade na Música

A imagem do maestro no imaginário coletivo é quase sempre a mesma: um homem de meia-idade, cabelos grisalhos, vestindo um elegante fraque preto, empunhando uma batuta com autoridade inquestionável. Mas o que acontece quando quem sobe ao pódio é uma mulher? Este artigo mergulha nos desafios, conquistas e lutas das maestras por reconhecimento e igualdade em um dos espaços de poder mais tradicionais da cultura ocidental.
Uma História Silenciada, Mas Antiga
Ao contrário do que muitos pensam, a presença feminina na regência não é um fenômeno recente. O registro mais antigo de uma regente data de 1594, no convento de San Vitto em Ferrara, Itália. Entretanto, a história dessas pioneiras permaneceu obscurecida por séculos, relegada às notas de rodapé da história musical.
Foi durante o período Entreguerras que uma brecha se abriu. Com a carência de profissionais homens devido às inúmeras baixas da Primeira Guerra Mundial, mulheres começaram a ocupar posições de regência profissionalmente. Mesmo assim, essas profissionais enfrentaram um ambiente hostil, marcado por discriminação explícita e resistência social.
"Subir ao pódio 'comandando' um coletivo de músicos, em uma sociedade predominantemente patriarcal, representa um desafio, muitas vezes inatingível para mulheres."
Joanídia Sodré: A Brasileira que Fez História
No Brasil, poucos conhecem a trajetória extraordinária de Joanídia Sodré (1903-1975), a primeira mulher da América Latina a obter formação acadêmica em regência. Em 1930, aos 27 anos, Joanídia alcançou um feito impressionante: regeu a Orquestra Filarmônica de Berlim, uma das mais prestigiadas do mundo.
Sua história, no entanto, permanece praticamente desconhecida nos anais da música brasileira – um reflexo do apagamento sistemático das contribuições femininas em campos tradicionalmente dominados por homens. Como aponta a historiadora Joan Scott, "as mulheres são sujeitos históricos", e reconhecer sua participação é fundamental para compreendermos a história em sua totalidade.
Desafios Cotidianos: Do Vestuário ao Reconhecimento
O Dilema do Vestuário
Enquanto instituições como as forças armadas e empresas adaptaram seus uniformes para corpos femininos, na música clássica, não existe uma vestimenta padronizada para maestras. Para os homens, o fraque ou terno representa não apenas elegância, mas autoridade e hierarquia.
Como destaca Dinah Quesada Beck, "os uniformes são atravessados, sustentados e marcados por conotações de gênero". A ausência de um código de vestimenta estabelecido para maestras sugere implicitamente que esses corpos não são o padrão esperado nesse ambiente. Quando uma maestra opta por usar um fraque, frequentemente é questionada por usar "roupa de homem" – quando, na verdade, é simplesmente uma roupa de maestro.
Mercado de Trabalho e Representatividade
As estatísticas são desanimadoras: em 2023, menos de 10% dos cargos de regência nas principais orquestras mundiais eram ocupados por mulheres. No Brasil, a situação não é diferente.
Historicamente, as mulheres não eram contratadas por orquestras devido à visão sexista sobre sua suposta falta de habilidade e comprometimento musical. Para superar essa barreira, muitas criaram suas próprias oportunidades, fundando orquestras exclusivamente femininas, como a Vienna Ladies Orchestra, organizada em 1867 por Josephine Weimlich.
O Olhar da Imprensa
A musicóloga alemã Anke Steinbeck, em seu estudo sobre maestras do século XXI, analisou como a imprensa retratava essas profissionais entre 1970 e 2003. Sua conclusão é reveladora: a mídia desse período contém principalmente críticas e reportagens que enfatizam a diferença de gênero das artistas, raramente se concentrando em sua competência artística.
Manchetes e parágrafos frequentemente caracterizados por descrições externas e atitudes sexistas prevalecem sob o pretexto de abertura social. Mesmo em 2023, análises comparativas mostram que pouco mudou: o "mito do pioneirismo" persiste, com cada nova maestra sendo tratada como uma exceção, não como parte de uma tradição.
O Movimento Mulheres Regentes: Ativismo em Ação
Em 2016, quatro maestras brasileiras – Lígia Amadio, Érica Hindrikson, Cláudia Feres e Vânia Pajares – reuniram-se em um café em São Paulo e, ao compartilharem suas experiências, perceberam que enfrentavam desafios semelhantes. Desse encontro nasceu o Movimento Mulheres Regentes e o Simpósio Internacional Women Conductors.
O movimento visa criar um espaço de contínua troca e entendimento sobre a atuação da mulher regente, especialmente no cenário profissional dos países americanos. As primeiras edições ocorreram presencialmente em São Paulo (2016) e Montevidéu (2018), reunindo maestras de diversos países para discutir temas como:
Reflexões sobre os papéis tradicionais na regência
Desigualdade no mercado de trabalho
Preconceito e discriminação
Desafios atuais femininos e projetos especiais
Mecanismos e propostas para corrigir a atual situação das mulheres regentes
A terceira edição, realizada virtualmente em 2020 devido à pandemia, alcançou proporções mundiais com 976 participantes de 36 países. Durante o encerramento, foi redigido um manifesto que apresentou demandas urgentes, entre elas:
Acesso a espaços e postos historicamente negados às mulheres na música
Combate à invisibilização do trabalho das mulheres na música
Repúdio a qualquer ação discriminatória e todas as formas de assédio
Estabelecimento de legislações que contemplem demandas de valorização, proteção e isonomia
Implementação de políticas que garantam a educação e o desenvolvimento musical de meninas e jovens
Entre os dias 24 e 26 de outubro, eu terei a honra de participar da quinta edição do Simpósio, que será realizada em Las Palmas, nas Ilhas Canárias, com o tema Caminhos para a Igualdade.
Mulheres, Poder e o Pódio: Diálogos com Mary Beard
Como analisa Mary Beard em "Mulheres e poder: um manifesto", a relação entre mulheres e posições de autoridade é historicamente conturbada. Na regência orquestral, essa dinâmica se manifesta de forma particularmente evidente: o regente não apenas coordena, mas "comanda" um grupo, exercendo autoridade através de gestos e expressões – uma forma de poder tradicionalmente negada às mulheres.
As maestras enfrentam o que Beard identifica como mecanismos clássicos de silenciamento: se são assertivas, são rotuladas como "agressivas"; se são expressivas, como "emocionais demais". O pódio, como espaço simbólico de poder, representa perfeitamente o que a autora descreve como "a profunda marca cultural que separa as mulheres do poder".
Novos Horizontes e Perspectivas
Apesar dos desafios persistentes, ventos de mudança começam a soprar. Figuras como Marin Alsop, primeira mulher a dirigir orquestras como a Sinfônica de Baltimore e a Filarmônica de São Paulo, abrem caminho para novas gerações. No Brasil, nomes como Lígia Amadio, Priscila Bomfim e Mariana Menezes representam uma nova geração de maestras que conquistam reconhecimento por seu talento e dedicação.
Iniciativas como o Movimento Mulheres Regentes, além de grupos como Donne e Girls Who Conduct, têm contribuído para criar redes de apoio, oferecer mentorias e discutir abertamente os desafios enfrentados por mulheres no pódio. Mais que eventos isolados, representam movimentos de resistência e transformação.
Conclusão
O caminho para a igualdade de gênero no pódio ainda é longo, mas cada maestra que empunha a batuta contribui para transformar não apenas a música, mas também nossas percepções sobre liderança, autoridade e excelência artística.
Como afirma o manifesto do III Simpósio Internacional Mulheres Regentes, é necessário o "apoio e o compromisso das classes políticas e dos responsáveis pelas diversas instituições culturais, para que se efetivem as propostas resultantes do manifesto."
A história das mulheres na música é, como escrevi em 2003, "uma história não dita". Graças aos esforços de pesquisadoras, pesquisadores e intérpretes, cada vez mais a vida dessas personagens vem sendo revelada. Mas a lacuna ainda é abissal, e cada passo na direção de reconhecer e valorizar as maestras contribui não apenas para a música, mas para uma sociedade mais justa e igualitária.
A batuta nas mãos femininas não é apenas um símbolo de conquista individual, mas um poderoso instrumento de transformação cultural.



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